Mata on Rodrigues, 'Espectros de Batepá: memórias e narrativas do 'Massacre de 1953' em São Tomé e Príncipe'
Inês Nascimento Rodrigues. Espectros de Batepá: memórias e narrativas do 'Massacre de 1953' em São Tomé e Príncipe. Oporto: Edições Afrontamento, 2018. 300 pp. EUR 18.00 (paper), ISBN 978-972-36-1659-0.
Reviewed by Inocência Mata (Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa)
Published on H-Luso-Africa (May, 2019)
Commissioned by Philip J. Havik (Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT))
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Uma gramática da fantasmagoria do Massacre de Batepá
Resultado da sua tese de doutoramento, defendida em 2017 na Universidade de Coimbra, e inserido na colecção MEMOIRS das Edições Afrontamento (o 2º volume desta colecção), este livro perscruta o lugar, no imaginário histórico são-tomense, do Massacre de Batepá, perpetrado pelo Governador Carlos de Sousa Gorgulho, em Fevereiro de 1953, hoje Dia dos Mártires da Liberdade e feriado nacional em São Tomé e Príncipe. Nele, a autora pretendeu demonstrar, a partir desse um acontecimento crucial na história de São Tomé e Príncipe de que forma ele moldou – e vem moldando – o imaginário identitário são-tomense, sobretudo na sua relação interna, isto é, entre os segmentos que compõem a paisagem humana são-tomense. Por outro lado, ela vai demonstrando a tese de que em certos discursos políticos e comemorações portugueses persiste ainda, mesmo na academia, a ideia, transformada em ideologia, de que o colonialismo português foi mais suave e pacífico do que outros colonialismos europeus. Esta tese, sintetizada entre outras, na perversa ideia de que colonialismo português foi um “colonialismo intercultural” – uma contradição entre termos – o que vem demonstrando uma dificuldade no reconhecimento de que o colonialismo português foi tão imperial como outro qualquer, com as suas especificidades, nem sequer tendo sido o mesmo nos diferentes territórios africanos e outros que colonizou. Na verdade, em rigor deveríamos falar em colonialismos portugueses … É sintomático o facto de, mesmo depois da polémica de Gorée,[1] o presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa na sua visita a São Tomé em Fevereiro de 2018 e, na visita a Fernão Dias, se referiu ao acontecimento que tão profundas cicatrizes deixou, como a “faceta menos boa”[2] do colonialismo português. É curioso que esta afirmação, não parece ter provocado qualquer indignação por parte da consciência cívica dos são-tomenses.
Trata-se de um livro com uma execução gráfica impecável, e muito bem organizado em termos de uma ampla bibliografia, acaba por ser também um trabalho de sistematização bibliográfica que permitirá futuros trabalhos de pesquisa sobre este acontecimento que a autora considera “fantasmagorias” das narrativas da nação são-tomense. Aliás, uma grande mais-valia deste livro, para além da exposição segura de um tema inédito nos estudos são-tomenses, é precisamente a apresentação das representações imaginárias do massacre, que já se conhecia, mas que a autora sistematizou e que designou “arquivo polifónico da imaginação do Massacre de 1953 em São Tomé e Príncipe” (p. 16, p. 19).
E como pretendeu – e conseguiu levar a bom porto – a autora esse propósito? Com o prefácio de seu orientador, António Sousa Ribeiro, e o posfácio de Miguel Cardina, ambos investigadores do CES, e um acervo de entrevistas inéditas a figuras das artes e cultura são-tomenses, o livro organiza-se em cinco partes e dez capítulos.
Na primeira parte, com dois capítulos, a autora discute conceitos como fantasmagoria e espectro e o processo da sua descolonização, situando a discussão teórica e disciplinarmente, no âmbito da sociologia das ausências e das emergências; na segunda e terceira parte, composto por dois e tres capítulos respectivamente, existe um adentramento desta questão nos lugares onde se alojam os ossos, fantasmas e espectros do Massacre de 1953, desfibrilhando as representações do Massacre em textos literários coloniais. Estas são comparadas na quarta parte, composta por tres capítulos, com as memórias nacionais, consideradas “pós-memórias”, sendo, por isso, nesta parte que se inserem as duas entrevistas aos designados “netos” do Massacre, ao destacar a poetisa Conceição Lima e o romancista Manuel Teles Neto. Isto, para além de “outros netos”, designação no contexto discutível pois, como mais adiante se verá, esta terminologia parece inadequada neste caso. É também nesta quarta parte que a autora discorre, a propósito desse elemento do imaginário, sobre a geografia da construção da nação e, simultaneamente, sobre as narrativas da reinvenção do império e da actualização da ideologia luso-tropicalista. A quinta parte, dedicada grosso modo a “considerações finais”, é dedicada à síntese dos modos e espaços de articulação dessas memórias a nível discursivo, simbólico e político.
Através dessa estrutura, a autora pretende responder a algumas questões tais como: O que é que os espectros contam sobre as memórias de Batepá e sobre o colonialismo português nas ilhas? O que é que revelam sobre as relações de poder e sobre a sociedade colonial? O que é que os espectros dizem sobre identidades sociais e grupos marginalizados no arquipélago? Quem escreve o massacre e quem o comemora? Como são desenhados Portugal e São Tomé e Príncipe nestas representações?
Embora por vezes haja algumas repetições, essa organização permite de acompanhar esse percurso de transformação de um acontecimento em facto histórico, na proposição de François Furet para quem acontecimento é o facto histórico revestido de singularidade, “aquele ponto de tempo ímpar em que se passa qualquer coisa que não é redutível àquilo que houve antes nem ao que virá depois”, considerando que de per se o acontecimento não é inteligível como tal: depende da sua função na narrativa, “em relação à significação externa e global do tempo que tem por função medir”. Quer dizer, o acontecimento “extrai a sua significação da sua posição no texto da narrativa, ou seja, do tempo”.[3] É essa singularidade que esta investigação capta conferindo-lhe significância(s) a partir de mudanças na estrutura do edifício social, também na escrita literária (um dos lugares de memória considerados).
Interessante é o facto de, para instrumental teórico, a autora ter cruzado produtivos textos de referência crítica na área dos estudos culturais, particularmente de estudo de espectros sobre identidades sociais e grupos marginalizados (p. 19), fantasmagorias, sociologias das ausências e das emergências, pós-memória. Neste contexto, inter-seccionou e questionou as suas teorias e modalidades conceptuais com aqueles de Avery Gordon, Michael Rothberg, Esther Pereen, Heonik Kwon, Jacques Semelin, Pierre Nora, Márcio Selligman-Silva, Jeffrey Olick, Marianne Hirsch, Beatriz Sarlo (cuja proposta me parece mais adequada que aquela da pós-memória), Achille Mbembe, Boaventura de Sousa Santos, António Sousa Ribeiro, Margarida Calafate Ribeiro, Roberto Vecchi – para apenas referir os mais citados autores do seu aparato teórico. Além destes, também cita autores de referência crítica sobre São Tomé e Príncipe (e não apenas), como Carlos Espírito Santo, José de Deus Lima, Carlos Neves, Gerhard Seibert, Augusto Nascimento, Fernando Rosas, e eu própria.
Ora neste ponto, é preciso enfatizar um aspecto muito positivo da investigação deste livro que é ler os que os são-tomenses escrevem e dialogar com eles – o que, vale referir, não é o que costuma acontecer nos estudos sobre África em Portugal. Hoje ainda menos, deve dizer-se. Existe alias um completo silêncio daquilo que os africanos escrevem sobre si próprios, como se apenas pudessem ser objecto e nunca sujeitos, o que levou Ki-Zerbo de falar de um “embargo histórico” ao referir-sea um certo de tipo de investigação (europeia) sobre a África como um dos instrumentos da colonização (2001, p. 15), na sua entrevista a René Holenstein, em Para quando África?[4] Eis porque a páginas tantas a autora junta a sua voz à interrogação de Gayatri Spivak, interrogando-se se os subalternos podem falar – pergunta a que responde, de forma muito optimista, que sim. É interessante essa consciência ética de uma jovem investigadora europeia tendo em conta a “normal” atitude de muitos africanistas europeus quando escrevem sobre África, como aconteceu, por exemplo, em A History of Postcolonial Lusophone Africa (2002), editado por Patrick Chabal,[5] em que os autores dos artigos não citam um único historiador africano – seja angolano, guineense, moçambicano ou são-tomense. Apenas no capítulo sobre Cabo Verde, da autoria de Elisa Andrade, aparecem citados historiadores cabo-verdianos. O que devia ser regra, é excepção entre muitos “africanistas”, incluindo autores portugueses.
Mas há mais neste livro: quando começa o adentramento textual, em que os romances são objecto de estudo, há, no início de cada capítulo, uma breve introdução aos meandros das diferentes perspectivas teóricas que ancoram o discurso num fundamento claramente definido. Esta abordagem faz com que, a escrita não se torna “pesada” - apesar das inúmeras e tão longas notas de rodapé sejam um aspecto inibidor de uma leitura prazerosa - não obstante a metódica exposição, a localização histórica, a clareza sobre o funcionamento deste procedimento, a transversalidade de referências. Interessante neste contexto é o contraponto que é feito, na escrita do massacre como lugar de imaginação colonial e da nação são-tomense, respectivamente, entre a literatura colonial (Fernando Reis e Luís Cajão) e a literatura nacional são-tomense (minha designação), no caso de Alda Espírito Santo, Manuela Margarido, Sacramento Neto, Manuel Teles Neto e Conceição Lima. Ana Maria Deus Lima e Carlos Neves também pertencem a este grupo, sendo estes últimos autores que escreveram alguns poemas de circunstância publicados na Antologia Poética de S. Tomé e Príncipe, 1978, mas que, em rigor, não serão propriamente poetas. Um contraponto em que Sum Marky (pseudónimo de José Ferreira Marques) aparece também como “escritor intervalar”.[6] Hoje mereceria um questionamento desse “lugar intervalar”, se tivermos em conta Sacramento Neto, cuja escrita é dimensionada numa intensa ‘colonialidade’. Isto vai ao encontro do que a autora afirma na página 83, de que “o paradigma colonial não morreu com o fim do colonialismo e do imperialismo” – questão que, embora interessante, não cabe analisar nesta recensão. Neste ponto é feliz esta proposta da autora quanto ao estudo da literatura no tratamento desta questão sobre assombramentos e fantasmagorias, quando afirma logo no início que “literatura é também política (…) que em articulação com outros tipos de texto e/ou documento pode iluminar os debates sobre este acontecimento através da encenação de novos dados, novas histórias e diferentes memórias que, de outra forma, ficariam silenciadas” (p. 20).
A propósito dessa inclusão, este trabalho da Inês Nascimento Rodrigues desenvolveu-se, de certa forma, na contramão do que geralmente certa crítica, na área das literaturas de língua portuguesa, vê as literaturas africanas como sistemas menores. Isso apesar de os escritores eleitos a objecto de sua pesquisa serem escritores que, à excepção dos poetas da Casa dos Estudantes do Império e no que diz respeito à actual literatura Conceição Lima, transitam pelas margens dos sistemas das literaturas em português. Pode dizer-se, por isso, que este livro contribui para a viragem dessa imagem da crítica literária, para a neutralização da subvalorização por que passa a literatura são-tomense em certos círculos – ainda que o seu trabalho não tivesse passado por esta questão do cânone e da ‘perifericidade’.
Neste contexto, ao eleger como objecto da sua investigação um tema nunca antes tratado como objecto de estudo nas literaturas africanas e, particularmente, da literatura são-tomense, a autora atinge este preconceito no âmago do seu nicho argumentativo: o critério da qualidade literária. Quase se pode dizer, por isso, que a autora faz cumprir o pressuposto que enuncia, na esteira de um dos estudiosos em que se baseia, no caso Diana Espírito Santo e Ruy Blanes, para quem “A ausência, tal como a presença, gera efeitos, traçando os contornos dos corpos, espaços e histórias” (p. 17).
Este Espectos de Batepá: Memórias e narrativas do Massacre de 1953 em São Tomé e Príncipe é um livro necessário para os estudos literários, para os estudos culturais, para os estudos Africanos e para os estudos sobre cultura, história e literatura são-tomenses. Há, porém, alguns pontos que cumpriria esclarecer: a ideia de Netos do Massacre, em “A pós-memória e os netos do massacre: algumas considerações conceptuais” (pp. 153, 182), mereceria mais desdobramentos que não apenas a utilização de um conceito aplicado pois, em rigor, qualquer são-tomense nascido em finais dos anos 50 e nos anos 60 conviveu directamente com os efeitos do massacre. É por isso que me parece pouco fundamentada a ideia de “netos” e “pós-memória”, que mereceriam nova re-significação para além da categoria conceitual para estudos de memória proposta por Marianne Hirsch.[7] Julgo, por exemplo, que o que está em questão é a narrativização da memória do tempo de escrita e tempo histórico – questão que, se posta em termos de “pós-memória”, parece estabelecer uma oposição, “[uma] fissura que se opera entre experienciar um acontecimento e lembrá-lo como representação”, para me reportar a Andreas Huyssen em Memórias do Modernismo[8] – narrativizá-lo, afinal – o que torna, no caso da escrita literária, a criatividade cultural e artística vigorosa e estimulante. Por outro lado, a ideia tantas vezes repetida de que nem todos os portugueses estiveram envolvidos e que houve brancos que se puseram do lado dos são-tomenses (p. 162), pode provocar certo incómodo e até uma interpretação de que a autora estaria à busca de uma relativização do evento e uma desculpabilização da autoria do massacre como ‘acto colonial’. Ora, ninguém desconsidera que um massacre – ou até uma ditadura – é um “sempre um acto complexo, repleto de matizes e significados, com a participação de actores diversos, movidos por diferentes estímulos” (p. 266). É assim em qualquer ditadura, é assim em qualquer repressão, e em São Tomé e Príncipe não foi excepção em 1953.
Notes
[1]. Afirmações de Marcelo Rebelo de Sousa, em Abril de 2017, na sua visita à “Casa dos Escravos” na ilha de Gorée; ver “Portugal reconheceu injustiça da escravatura quando a aboliu em 1761 diz Marcelo”, 13 de Abril de 2017, O Público, https://www.publico.pt/2017/04/13/politica/noticia/portugal-reconheceu-injustica-da-escravatura-quando-a-aboliu-em-1761-diz-marcelo-1768680#gs.MLQ7C8gB.
[2]. “Inês Rodrigues acaba de publicar livro sobre investigação acerca do massacre de 1953, em São Tomé e Príncipe”, entrevista a Inês Rodrigues por Andreia Sofia Silva, Hoje Macau, 17 de Julho de 2018, https://hojemacau.com.mo/2018/07/17/ines-rodrigues-acaba-de-publicar-livro-sobre-investigacao-acerca-do-massacre-de-1953-em-sao-tome-e-principe/.
[3]. François Furet, A Oficina da História (Lisboa: Gradiva, 1990), 82-83.
[4]. René Holenstein and Joseph Ki–Zerbo, Para Quando África? Entrevista de René Holenstein (Lisboa: Campo das Letras, 2006).
[5]. Patrick Chabal, org., A History of Postcolonial Lusophone Africa (Londres: Hurst & Co., 2002).
[6]. Inocência Mata, Emergência e existência de uma literatura: o caso santomense (Lisboa: Edições ALAC, 1993). No que diz respeito a obra de Sum Marky, ver Crónica de uma Guerra Inventada (Lisboa: Veja, 1999).
[7]. Ver por exemplo, Marianne Hirsch, La Generacion de la Pos-Memoria: escritura y cultura visual después del Holocausto (Madrid: Carpe Noctem, 2015).
[8]. Andreas Huyssen, Memórias do Modernismo (Rio de Janeiro: Editora Universidade Federal de Rio de Janeiro, 1997), 14.
Citation:
Inocência Mata. Review of Rodrigues, Inês Nascimento, Espectros de Batepá: memórias e narrativas do 'Massacre de 1953' em São Tomé e Príncipe.
H-Luso-Africa, H-Net Reviews.
May, 2019.
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